sábado, 28 de abril de 2018

Razão de Ser


Paulo Leminski
Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso,
preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece,
E as estrelas lá no céu
Lembram letras no papel,
Quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?

sexta-feira, 27 de abril de 2018

Esse muso, o dedinho



Rodolfo Pamplona Filho


Num saco de boxe pesado,

o papito, coitadinho,

deu um murro atravessado

e fraturou o dedinho


Morrendo de dor, o danado

foi correndo ao medicozinho

que não se fez de rogado

e tirou um retratinho


Vendo a fratura escondida,

sorrateira e bem malvada,

imobilizou sob medida

e solucionou a charada:


Para ficar bom, sem chorada,

e ganhar essa parada,

só consulta especializada

e uns beijinhos da filharada...


New York, 28 de dezembro de 2011.

quinta-feira, 26 de abril de 2018

O Amor, Meu Amor



Mia Couto

Nosso amor é impuro
como impura é a luz e a água
e tudo quanto nasce
e vive além do tempo.

Minhas pernas são água,
as tuas são luz
e dão a volta ao universo
quando se enlaçam
até se tornarem deserto e escuro.
E eu sofro de te abraçar
depois de te abraçar para não sofrer.

E toco-te
para deixares de ter corpo
e o meu corpo nasce
quando se extingue no teu.

E respiro em ti
para me sufocar
e espreito em tua claridade
para me cegar,
meu Sol vertido em Lua,
minha noite alvorecida.

Tu me bebes
e eu me converto na tua sede.
Meus lábios mordem,
meus dentes beijam,
minha pele te veste
e ficas ainda mais despida.

Pudesse eu ser tu
E em tua saudade ser a minha própria espera.

Mas eu deito-me em teu leito
Quando apenas queria dormir em ti.

E sonho-te
Quando ansiava ser um sonho teu.

E levito, voo de semente,
para em mim mesmo te plantar
menos que flor: simples perfume,
lembrança de pétala sem chão onde tombar.

Teus olhos inundando os meus
e a minha vida, já sem leito,
vai galgando margens
até tudo ser mar.
Esse mar que só há depois do mar.

quarta-feira, 25 de abril de 2018

Diagnóstico: Rotina





Rodolfo Pamplona Filho

A rotina é inevitável
para qualquer pessoa,
mas adorá-la e desejá-la
rígida, imutável, chata...
soa patológico...

O que mata uma paixão
não é o fim do amor,
mas a falta de vibração
e de ânimo de quem
se busca amar...

A falta de vontade
de dançar, de beijar,
de fazer, de tudo,
um pouco, vivendo
pequenas loucuras...

A falta de encantamento
com a música, a cor e a poesia...
Vira falta de tesão
e de calor na alma,
na cama e no drama...

Salvador, 09 de janeiro de 2013.

terça-feira, 24 de abril de 2018

Soneto da Fidelidade



Vinicius de Moraes

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa dizer do meu amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

segunda-feira, 23 de abril de 2018

Pontualidade









Rodolfo Pamplona Filho

Achar natural
que outros esperem,
ainda que alguns segundos,
fazer algo que
só interessa a você
é o cúmulo da cara-de-pau
com a falta de noção...
E o pior de tudo
é quando se pede
que tenham consciência
para respeitar
o que só lhe interessa,
seja o embarque
(ou desembarque)
de alguém
ou mesmo
que algo ocorra
como se fosse
a mais importante
de todo o universo.
Como não se irritar
com as desculpas
ou justificativas
para seu atraso?
Ver rostos contritos,
olhos de gato de botas
ou um ar indignado
de quem foi vítima,
e não a causa
do irritante atraso
que prejudica todo mundo,
até mesmo a si...
E quem ousa reclamar,
deixando o silêncio conveniente,
para ser descrito
como um sujeito paranóico,
estressado ou simplesmente chato,
que fica inventando caso
ou querendo aparecer...
Pontualidade é respeito
ao tempo alheio!
E ponto!

Atenas, 29 de setembro de 2012.

domingo, 22 de abril de 2018

De cara lavada - 177



Martha Medeiros

hoje me desfiz dos meus bens
vendi o sofá cujo tecido desenhei
e a mesa de jantar onde fizemos planos

o quadro que fica atrás do bar
rifei junto com algumas quinquilharias
da época em que nos juntamos

a tevê e o aparelho de som
foram adquiridos pela vizinha
testemunha do quanto erramos

a cama doei para um asilo
sem olhar pra trás e lembrar
do que ali inventamos

aquele cinzeiro de cobre
foi de brinde com os cristais
e as plantas que não regamos

coube tudo num caminhão de mudança
até a dor que não soubemos curar
mas que um dia vamos